Cartas do Exílio e Outras Histórias
Todo mundo tem um acervo!
O que fazer com um acervo de aproximadamente 1000 cartas que estavam no fundo do armário por quase 50 anos? Essa foi a pergunta que meu pai, Michel, e sua irmã Lucila começaram a responder, em meio à pandemia, em 2021.
Essas cartas foram trocadas entre 1969 e 1979 pela família durante o exílio da Lucila, na Bulgária. Essas cartas, contudo, além de contar a história dessa família também conta uma história maior, que é a História do Brasil, narrada pela perspectiva de pessoas que registraram nas cartas, sentimentos, impressões, análises políticas e culturais daquele período.
Esse não foi um projeto tocado integralmente pela Pacta Clara, mas ajudamos, pontualmente, na organização do acervo e extroversão do conteúdo. Siga com a gente, que vamos contar essa história para vocês!
Meu pai e sua irmã, viveram a juventude na década de 1960, no auge da ditadura civil-militar no Brasil. Entre 1969 e 1979 Lucila e seu companheiro José estiveram exilados na Bulgária por aproximadamente 10 anos. Durante o exílio, construíram uma vida que incluiu entre outras coisas, estudos, amigos, passeios, casamento e filhos. A principal forma de comunicação com a família que ficou no Brasil foram as cartas. Ligações telefônicas internacionais eram raras, caras e demandavam uma logística bem grande, como combinação prévia de dia e hora que a ligação aconteceria.
Em meados de 2021, meu pai achou algumas dessas cartas, guardadas em uma pasta em um fundo de gaveta, e mostrou para sua irmã, com a sugestão de reunirem algumas delas e mostrarem para a família no natal daquele ano. Lucila se animou com a ideia e procurou as cartas que ela havia recebido. E eram tantas e tantas cartas. Tantas histórias ali contadas. A ideia de reunir algumas dessas histórias foi ganhando força, mas algumas dificuldades para a concretização dessa ideia apareceram:
- A logística era complicada: eles não moram na mesma cidade;
- A pandemia que não estava nem perto de uma solução;
- Não conseguiam se organizar em meio a tantas cartas e tantas informações;
De concreto apenas as cartas e a vontade de fazer algo em segredo. Precisando de ajuda e sabendo da minha experiência com acervos, revelaram o segredo e pediram apoio para que a ideia pudesse ser executada. E aos poucos, com método, organização e paciência foi possível dar concretude a tantas ideias bacanas.
Desenvolver um projeto de acervo familiar é diferente do que desenvolver um projeto empresarial. Nas empresas, prazos e orçamento, via de regra são definidos previamente. Há uma equipe designada para a execução do projeto e que normalmente não está envolvida emocionalmente com o assunto ou tema abordado.
Nesse caso, o projeto falava da nossa família, de histórias que eles viveram e contaram, de amigos e parentes que se foram, de outros que nasceram. São histórias que eu ouvi desde sempre, mas que registradas naquelas cartas, ganharam outro peso, outra dimensão. Essas variáveis mexem com nossas emoções e memórias, conhecemos melhor pessoas, fatos, datas. Entendemos tantas coisas. (Re) conhecemos pessoas que já partiram, lembramos o quanto eram engraçadas, divertidas, o quanto fazem falta e o quanto é bom poder ler o que escreveram, como escreveram, lembrar da sua letra e de histórias outrora esquecidas.
Agora, éramos um time: eu, Michel e Lucila e agregamos algumas pessoas ao longo do caminho que nos ajudaram a dar vida a esse projeto ainda sem forma definida.
Esse artigo tem o objetivo de detalhar o processo de organização da documentação que permitiu que o projeto tomasse corpo. Documentos desorganizados são apenas documentos antigos guardados no fundo de uma gaveta qualquer.
QUAL O TAMANHO DO ACERVO?
Dimensionar o acervo é fundamental, sem esse dado, qualquer ação futura fica prejudicada. Todas as cartas foram enviadas para a minha casa. E eram muitas, quase 1000. Vieram numa grande caixa de computador, daqueles de mesa. Todas misturadas. Sem envelopes. Soltas.
COMO ORGANIZAR O ACERVO?
Essa é uma questão importante. Aqui, não havia certo ou errado, mas para que pudéssemos dar andamento ao projeto, que se desenhava ainda como um compilado de cartas para serem distribuídas no natal, precisávamos organizar a informação.
As cartas podiam ser separadas por:
ordem cronologia
remetente
assunto
A leitura das cartas nos fez perceber que elas contam uma história e têm uma relação direta entre elas. Assim entendemos que a melhor forma delas fazerem sentido para o que pretendíamos era a organização em ordem cronológica. Acondicionei cada carta individualmente em saco plástico e estes em pastas, em ordem cronológica. Com a documentação organizada, foi possível dar o próximo passo.
COMO ”LER” OS DOCUMENTOS
Essa foi a etapa mais importante e mais difícil do trabalho. Ler as cartas manuscritas era difícil, além das diferentes grafias, a nossa separação geográfica e o segredo do projeto impediam a circulação das cartas. Decidimos, então, digitar carta a carta. Todas elas. Sem exceção! Ufa, que trabalho. Que logística! Aqui, precisamos de ajuda externa para, em um curto espaço de tempo, digitar as cartas. A Pacta Clara cedeu duas pessoas de sua equipe para esse serviço e mais duas pessoas foram contratadas para a digitação do material.
Esse processo envolveu logística e controle dos documentos que circularam por diferentes locais. Na entrega: quantas cartas, quais e para quem! Na devolução: conferência se tudo retornou, se tudo foi digitado, além da conferência da digitação.
A digitação ocorreu por ordem cronológica, da mais antiga, para as mais recentes, as cartas de um mesmo ano formaram um único arquivo de word por ordem cronológica, assim, Lucila e Michel começaram a trabalhar na revisão e seleção enquanto o restante era digitado. Um pequeno cabeçalho foi elaborado para a “separação” e identificação das cartas, facilitando a conferência e seleção.
De: Alice (Mãe) | Para: Michel (Pai) |
Data: 11 de Maio de 1951 | Local: São Carlos |
COMO FAZER A SELEÇÃO DAS CARTAS?
Lucila e Michel fizeram a seleção prévia das cartas e de forma orgânica uma metodologia foi estabelecida para esse processo. Lucila ficou a cargo de fazer a primeira seleção e cortes do material e nós demos palpites e sugestões durante esse processo. Nesse processo de seleção uma espécie de introdução/explicação/contextualização de cada carta selecionada foi escrita pela Lucila.
A essa altura o produto final não seria um compilado de algumas cartas, entregues para a família, no natal. Entendemos que o assunto era tão relevante para nós, tinha tanta conexão com o momento histórico vivido no país, os mais velhos se (re) conhecerem naquelas cartas, lembrando dos momentos vividos, agora, com a elaboração de mais de 50 anos do ocorrido. Os mais jovens, os netos não nascidos na época, os bisnetos seriam todos impactados com este trabalho, conheceriam profundamente um momento ímpar da família. Nascia então a ideia de produzirmos um livro.
SE É LIVRO, PRECISA FOTOGRAFIAS
Se a seleção das cartas ganhava forma de livro, seria muito legal se pudéssemos ilustrar os momentos com as fotografias da época. Depois de toda a seleção das cartas feitas, nos reunimos em Campinas, na casa da Lucila, algumas vezes para fazer a seleção das fotografias, foi necessário revisitar o acervo fotográfico que estava organizado de modo que pudemos achar com certa facilidade as fotografias desejadas. As fotografias selecionadas foram digitalizadas pela equipe da Pacta Clara.
Foi também necessário, definir o melhor local que cada fotografia dentro do livro e elaborar uma legenda, contextualizando as fotografias.
ENFIM, UM LIVRO?
E todo bom livro, pede uma diagramação profissional. Convidamos o Rodrigo Linhares para a execução desse projeto, que topou na hora. Com sensibilidade, fez uma diagramação linda, uma capa sensível que respeitou toda a história e significado das cartas e desse projeto para nós.
Projeto aprovado, o próximo passo foi a concretização desse projeto/sonho em forma de livro: Cartas do Exílio e Outras Histórias: Família Labaki de 1969 a 1979.
O livro foi entregue para a família em uma reunião familiar. Foi especial revelar um segredo tão bem guardado, e em meio a pandemia brotar um projeto lindo que foi ganhando contorno ao longo do processo. E tudo isso só foi possível, claro, graças às cartas que foram preservadas por mais de 50 anos e que puderam, reunidas, torna-se um livro e ressignificar tanta coisa.
Acervos contam histórias importantes de momentos vividos e merecem ser preservados e divulgados.
Qual o seu acervo? Conte para nós o significado dele para você!
Eneida Cintra Labaki